Considerado melhor do mundo, projeto da ONU no semiárido valoriza mulheres

Pró-Semiárido, realizado por agência das Nações Unidas e governo da Bahia, impacta 62 mil pessoas na região rural mais pobre do Estado

Paulo Beraldo

“Aqui na comunidade tem um antes e um depois do Pró-Semiárido”. Asim a agricultora Carla Dias da Silva se refere ao Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável da Região Semiárida da Bahia, o Pró-Semiárido, que atende 62 mil pessoas no interior do Estado. O projeto, realizado pelo principal banco de investimento rural da Organização das Nações Unidas (ONU) e o governo baiano, foi considerado o melhor do mundo em 2020. E agora luta para se adaptar a uma pandemia global. 

Em janeiro, uma avaliação entre 231 projetos do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (FIDA/ONU) em 98 países colocou a iniciativa baiana no topo. Os motivos para a escolha foram as inovações do projeto, o destaque para o papel de jovens, mulheres e quilombolas, a assistência técnica contínua e os impactos econômicos e sociais conquistados em 32 cidades do semiárido da Bahia.  

Agora, a pandemia tem forçado mudanças: antes, os agricultores vendiam nas feiras das cidades próximas e nos mercados do produtor rural. Tudo isso reduziu. “Estamos procurando outros meios”, explica Carla da Silva, que tem 25 anos, nasceu e cresceu na zona rural do município de Juazeiro.

Enquanto a troca de produtos entre vizinhos ganhou força, outros vendem de porta em porta, usam o WhatsApp e as redes sociais. Já os grãos têm sido armazenados e os animais que seriam abatidos ficam no pasto até as feiras voltarem.

Na avaliação de Ndaya Beltchika, líder da área de gênero e inclusão social do FIDA, a maior adoção de tecnologia é fundamental neste momento. "A pandemia abriu um novo capítulo na área de tecnologia para agricultores, especialmente mulheres e jovens". Beltchika afirmou que os governos precisam incluir cada vez mais mulheres e jovens nos processo de decisão e capacitá-los para acessar mercados usando tecnologias.  

"Mulheres e jovens precisam estar representados em todos os projetos de recuperação econômica, desde o planejamento, a elaboração, a implementação e também no monitoramento, para garantir que as atividades sejam inclusivas e relevantes". 

Carla trabalha com quatro comunidades rurais na sua região e conta que a maioria dos produtos da alimentação vem do próprio quintal. Desde a implantação do Pró-Semiárido, foram instalados 1.217 aviários e 766 quintais agroecológicos nas cidades beneficiadas. Também foram construídas 588 cisternas para captação de água e unidades de beneficiamento de frutas. 

“A água aqui vale ouro. Agora está mais fácil plantar, colher, dar água para os animais e para as plantas”, resume. Os produtores foram capacitados para produzir seus próprios fertilizantes, conseguiram aumentar a produtividade do que plantam e agora recebem mais. Além, claro, do ganho econômico de não ter que comprar o que nasce no quintal. 

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Papel de mulheres e jovens é decisivo no projeto Pró-Semiárido. No detalhe, a caderneta agroecológica, que quantifica e dá visibilidade ao trabalho da mulher rural  Foto: Manuela Cavadas/FIDA

Investimentos de R$ 217 milhões no semiárido

O FIDA trabalha nos nove Estados do Nordeste, em Minas Gerais e no Espírito Santo, em parceria com governos locais e organizações regionais. Atende cerca de 300 mil famílias rurais na região mais pobre do País para elevar o desenvolvimento no campo. Também faz isso em outros quase 100 países. 

Com a pandemia, o fundo realocou recursos e está investindo R$ 217 milhões em ações como a compra e distribuição de cestas básicas, a aquisição de máscaras confeccionadas pelas comunidades e a disponibilização de sementes e insumos para a próxima safra. 

Mas a importância de projetos como o Pró-Semiárido ultrapassa o aumento da produção, diz Layane Silva Pereira, que tem 21 anos e é filha e neta de agricultores, moradora de Várzea do Poço, cidade com cerca de 9 mil habitantes na região central da Bahia. 

“No campo existe uma sociedade que precisa ser ouvida: a voz do agricultor, da mulher que sofre violência, do jovem que precisa de inclusão e de acesso a oportunidades”, diz ela, que sonha em fazer faculdade um dia. “Muitas vezes essas questões ficam isoladas da sociedade, mas essas vozes precisam ser escutadas e vistas com outro olhar”. 

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Layane Pereira plantando palma forrageira, que depois vai servir para alimentar os animais  Foto: Arquivo Pessoal
Layane exalta o acesso a tecnologias e conta que muitos agora produzem todo alimento que precisam, apesar das dificuldades econômicas de um momento como este. Sobre as vozes que não eram ouvidas, dá um exemplo: “Uma senhora que participa de um encontro de mulheres do projeto discute violências psicológicas que ela sofreu no passado e que hoje, por exemplo, ela não vai permitir que a filha dela sofra”, diz. “Ela aprende e então não se sujeita mais a passar por situações de violência física ou psicológica. É uma mudança grande que a gente percebe”. 

A voz das mulheres

O espaço para mulheres e jovens é visto nas atividades diárias. Uma delas é a caderneta agroecológica - nela, as mulheres anotam o que produzem, consomem, vendem e trocam. “Foi criada para ter um controle do que entra e sai, mas também para as mulheres perceberem a importância que tem a mão-de-obra feminina”, explica a jovem Carla Dias. 

“Às vezes, a gente vai nas casas e uma mulher diz: ‘eu não trabalho, eu fico em casa’, ou o homem diz: ‘eu vou trabalhar, mas ela fica em casa’. A gente quer que que elas entendam que ficar em casa, cuidar do quintal, do filho, é um trabalho. Queremos dar visibilidade à mulher agricultora”. 

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A agricultora Carla Dias, que mora na zona rural da cidade de Juazeiro, no interior da Bahia  Foto: Arquivo Pessoal
Geralmente quando se realiza uma reunião no campo, os homens participam e as mulheres precisam tomar conta das crianças. Ali isso também é diferente. “Em toda reunião sobre o projeto é feito em paralelo um trabalho lúdico com as crianças. São contratadas pessoas para fazer uma ciranda, brincar com as crianças e permitir que as mulheres tratem das questões do projeto e tenham uma participação nas decisões”, conta César Maynart, coordenador do Pró-Semiárido e funcionário da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), parceira do FIDA. 

Cada uma das comunidades atendidas pelo projeto Pró-Semiárido tem um jovem que atua como agente comunitário rural. No total, são 115 os jovens que moram nas comunidades, fazem visitas frequentes a todos os beneficiários e têm uma oportunidade de emprego, considerado uma realidade difícil para muitos. “Esses jovens são a ponte entre o projeto e as comunidades”, explica César. “É um incentivo para eles e permite que a gente tenha presença permanente junto às famílias”. 

Durante a pandemia, o governo baiano fez uma chamada para que associações comunitárias e organizações locais produzam 10 milhões de máscaras. O governo vai fornecer materiais como tecidos, linhas e elásticos para a confecção e cada uma será comprada por R$ 1. Depois, elas serão distribuídas nos municípios para funcionários da saúde. Os grupos das 32 cidades atendidas pelo Pró-Semiárido foram encorajados a participar. 

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Aliete Alves é agricultora quilombola de 26 anos e diz que se sente mais autônoma e empoderada com a participação no projeto Pró-Semiárido  Foto: Arquivo Pessoal
“Hoje posso afirmar que sou uma mulher mais segura, autônoma e com alguns graus de empoderamento conquistados a partir de minha participação, inserção nos espaços de sociabilidade, nos espaços produtivos, organizativos, culturais e reuniões”, contas Aliete Alves, agricultora quilombola de 26 anos. 

Ela mora em uma comunidade quilombola a 100 quilômetros da cidade mais próxima, Campo Formoso. A oportunidade de trabalho garantiu sua permanência no local e aumentou seu vínculo com os agricultores e agricultoras da região. Aliete trabalha para fortalecer a organização das comunidades e dos produtores, o que é importante para facilitar a compra de insumos mais baratos e a venda de produtos com maior acesso a mercados.

Para Aliete, o projeto é ainda uma forma de romper o preconceito de que uma mulher deveria priorizar o trabalho doméstico ou que não poderia estar em espaços de decisão. “Precisamos manter nossa voz ativa e ocupar diferentes espaços. Lugar de mulher é onde ela quiser”, comenta. / Reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo