Falta regulação nos sistemas alimentares, diz José Graziano, diretor da FAO
Paulo Beraldo
"É aí que o carro está patinando". Essas são as palavras do engenheiro agrônomo José Graziano, o primeiro brasileiro a dirigir a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a FAO, ao tratar da regulamentação dos sistemas alimentares ao redor do mundo. Para Graziano, que chega ao fim do segundo mandato em julho deste ano, a obesidade é hoje um problema de má nutrição até mais grave do que a fome em alguns países.
"O Brasil é um dos países onde a obesidade vem crescendo mais rapidamente, sobretudo entre crianças e mulheres. Uma geração de obesos será uma geração de pessoas doentes, o que vai comprometer não só o sistema público de atenção à saúde, mas também a vida dessas futuras gerações", disse em entrevista exclusiva ao Estado em que faz um balanço de seu mandato e aponta os desafios da instituição.
Para Graziano, a interferência do poder público na alimentação é necessária para que os consumidores entendam o que estão comendo e para que haja prevenção do aumento da obesidade. Hoje, há 33 milhões de obesos no Brasil e 670 milhões no mundo. "Dietas saudáveis carecem de mecanismos legais de promoção, seja pela rotulagem e taxação de produtos ricos em açúcares, sal e óleos saturados, seja pela coibição de propagandas de alimentos não-saudáveis destinadas a crianças", avalia.
Abaixo, os principais trechos da entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo.
A segurança alimentar está na agenda internacional de maneira satisfatória? E no Brasil?
A segurança alimentar tem crescido muito na agenda internacional. Não por acaso, o objetivo número 2 do desenvolvimento sustentável da agenda 2030 trata da erradicação da fome e de todas as formas de má nutrição. Ao longo desses sete anos, conseguimos apontar a todos os países, inclusive aos mais pobres, de que há um caminho, há uma direção para se erradicar a fome: com políticas públicas, com regulamentação e com exercício de direitos adquiridos.
No entanto, essa realidade não se verifica quando falamos de obesidade, o que sem dúvida é o grande mal desse século XXI. Estamos falando de milhares de mortes associadas à hipertensão, doenças cardiovasculares, diabetes. E com um custo exorbitante para os sistemas nacionais de saúde.
Podemos fazer muito mais para regular os nossos sistemas alimentares. Está faltando regulação. E é aí que o carro está patinando. Há muitos avanços tecnológicos em curso na produção, consumo e a distribuição de alimentos e, do lado da regulamentação, da presença do poder público, isso está muito atrasado. Há quem continue achando que o problema da alimentação é um problema apenas das famílias, mais especificamente das mães, que preparam a comida. Não é. As pessoas hoje não sabem o que comem, não sabem o que cozinham. E isso precisa ter uma interferência do poder público na sua regulamentação, para dar aos consumidores melhores condições de saber o que comem.
O engenheiro agrônomo José Graziano, primeiro brasileiro presidente da FAO. Foto: FAO/Cristiano Minichiello |
O Brasil é um dos países que têm agenda da alimentação no seu mais alto nível - pelo menos tinha, até o último governo. Espero que isso continue, porque o Brasil, se saiu do Mapa da Fome, não superou todos os problemas relacionados à má nutrição, entre eles a obesidade.
O Brasil é um dos países onde a obesidade vem crescendo mais rapidamente, e uma obesidade que afeta sobretudo as crianças e as mulheres. O que significa isso? Significa que o nosso futuro está sendo comprometido. Uma geração de obesos será uma geração de pessoas doentes, não-saudáveis. E isso vai comprometer não só o sistema público brasileiro de atenção à saúde, mas também comprometer a vida dessas futuras gerações.
Como avalia que as dietas atuais contribuam para esse problema? O que fazer para mudar?
A obesidade é, atualmente, um problema ainda mais preocupante do que a fome. Trata-se de um trabalho de prevenção. Além dos exercícios, temos de criar sistemas alimentares sustentáveis que promovam dietas mais saudáveis. Isso significa valorizar o consumo de produtos locais e naturais e a prevenção do consumo de produtos ultraprocessados.
Esse tipo de produto, como a salsicha, é daquele que não se consegue identificar o que tem dentro, e por isso não se sabe quanto açúcar, sal e gordura se está consumindo. A dieta mediterrânea e a dieta japonesa, que valorizam muito os peixes, as verduras e os legumes, são duas boas referências de cardápios saudáveis com as quais temos trabalhado.
O sr. costuma dizer que não se pode tratar alimentos apenas como "commodities financeiras". Como difundir esse entendimento?
Recentemente, estive em um evento no Brasil e afirmei que a tendência mundial não é o crescimento apenas das commodities. Há um espaço consideravelmente grande, cada vez maior, para as “não-commodities”: são os produtos locais, que não estão disponíveis no mercado internacional tradicional. E são produtos diferenciados, na maioria das vezes mais nutritivos e produzidos de maneira mais sustentável, por agricultores familiares.
Hoje, a alimentação não é mais baseada unicamente em commodities, apesar de a maior parte dos alimentos que nós consumimos (trigo, milho, soja e arroz) serem commodities. Há uma tendência crescente do consumo de frutas, verduras e carnes. Muitas destas não são commodities. Isso abre um espaço muito importante para a diversificação das dietas, e é uma aposta importante, principalmente se queremos promover uma dieta de qualidade nutritiva.
Quais principais desafios a nova gestão da FAO deve enfrentar?
Diria que o impacto das mudanças climáticas e dos conflitos na segurança alimentar dos países em desenvolvimento. Nos conflitos, a FAO tem um papel relativamente limitado, que é assistir as populações afetadas e acompanhar sistematicamente os resultados obtidos. Nós já temos evidências suficientes para afirmar que a fome é uma próxi dos conflitos - quando aumentam os conflitos, aumenta a insegurança alimentar.
Dos mais de 800 milhões de pessoas que passam fome atualmente, mais de 500 milhões estão sob situação de conflito. Fomos os primeiros a chamar a atenção disso, quando fui ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, há quatro anos. Em maio do ano passado, e com base nessas evidências, o Conselho reconheceu o vínculo entre conflito e insegurança alimentar como uma resolução, que encarregou a FAO e o Programa Mundial de Alimentos (PMA) de relatarem, duas vezes por ano, os dados atualizados dos países que eles monitoram. Nessa pesquisa, nossos técnicos percorrem cidade por cidade, vila por vila e casa por casa, e perguntam como anda a alimentação das pessoas.
Sabe-se que há produção de alimentos suficiente para alimentar todo o planeta. Qual o caminho para levar alimentos àqueles que não conseguem obtê-los hoje em dia?
Temos feito um esforço de programa de ajuda alimentar aos países em conflito junto com o PMA, com foco a áreas específicas. Um dos programas mais bem-sucedidos da FAO, por exemplo, é o programa de alimentação escolar com compras locais da agricultura familiar. É uma maneira criativa de promover circuitos locais de produção e consumo de produtos frescos, como frutas e verduras, além de levar o alimento de maior qualidade, mais nutritivo. É muito mais barato e impulsiona as economias locais.
Como a FAO e outras entidades podem trabalhar para pacificar esses ambientes?
A FAO não tem mandato para atuar na pacificação de conflitos. Mas temos trabalhado diuturnamente para ajudar as populações afetadas. A FAO nunca saiu da Síria. Aliás, a FAO nunca saiu de nenhum país em conflito. Esse é um dos maiores orgulhos que tenho de nosso trabalho. Nós continuamos produzindo na Síria hoje, em pleno conflito, 50% do que se produzia antes do conflito. Imagine a importância disso? Metade do alimento hoje consumido na Síria é produzido em regiões de conflito. Isso minimiza consideravelmente o alto custo da ajuda alimentar externa.
Edifício da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/ONU) em Roma, na Itália. Foto: FAO/Alessia Pierdomenico |
Balanço do mandato
Antes de assumir, o sr. disse que cinco pilares orientariam o seu trabalho: erradicação da fome, promoção de mudanças nos padrões de produção e consumo de alimentos, criação de um sistema de governança da segurança alimentar mais eficiente, a conclusão da reforma da FAO e aumento da cooperação entre internacional. Chegando ao fim do mandato, qual mais avançou e qual teve mais dificuldades?
Avançamos mais em duas áreas: a cooperação entre países em desenvolvimento e a reforma interna da FAO. Conseguimos mediar e auxiliar países a compartilharem suas experiências bem-sucedidas nas mais diversas áreas sob nosso mandato. Isso inclui políticas públicas de combate à fome, a promoção da agricultura sustentável, a adoção de leis de coibição à pesca ilegal, a formulação de medidas de rotulagem de alimentos, e muitas outras. Essa foi uma grande conquista: empoderar os países antes tradicionalmente receptores de ajuda a promotores de cooperação com base em suas próprias receitas de sucesso.
Com o apoio da FAO, as experiências brasileiras seguem como grande referência de cooperação sul-sul, como se vê, por exemplo, na adoção das técnicas usadas para a construção das cisternas no Semiárido Nordestino pela Articulação do Semiárido em outras continentes, como na África Sub-Sahariana e na América Central.
Mas países africanos também têm emprestado suas experiências a países vizinhos, como se desenvolveu em um primeiro momento no PAA África - o programa de aquisição de alimentos inspirado no modelo brasileiro - e mais recentemente no Fundo Fiduciário de Solidariedade Africana, criado por países africanos de maior renda per capita para ajudar outras nações mais pobres do continente.
E quanto à reforma interna da instituição?
Conseguimos implementar a maior parte das ações fundamentais inicialmente planejadas. Logo que assumi, em 2012, focalizamos nossas atividades em cinco metas estratégicas que se transformaram mandamentos da organização: a erradicação da fome; a promoção da agricultura sustentável; o combate à pobreza rural; a melhoria dos sistemas alimentares; e o desenvolvimento de resiliência aos choques climáticos e ao conflito.
Ao adaptarmos a estrutura interna a essas metas, conseguimos nos adaptar prontamente às mudanças que eram necessárias para que todo o sistema ONU trabalhasse pelos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), aprovados em 2015. Além disso, executamos uma profunda descentralização de nossos programas, com uma estrutura de escritórios locais e regionais mais autônomos e interligados por um moderno e barato sistema de tecnologia da informação.
E por fim, revolucionamos a política de contratação de funcionários e consultores, com vagas publicamente anunciadas, critérios e exigências bem definidas, avaliação por painéis independentes e, de quebra, aperfeiçoando a representatividade de gênero – hoje quase 50% de nosso quadro é composto por mulheres - e de país: quase todos os 197 Estados Membros estão presentes em nosso estafe, inclusive a maioria das mais remotas ilhas do Pacífico.
Onde a FAO menos avançou?
A área em que menos avançamos foi na criação de mecanismos de governança alimentares mais eficientes (leis, regulamentações e instituições). Com o apoio a políticas públicas de segurança alimentar baseadas no aumento da renda e do poder aquisitivo - especialmente destinadas à população rural - temos conseguindo obter êxito nos países em que não há conflitos ou efeitos extremos da mudança climática.
Há três anos, o aumento dos conflitos e dos choques climáticos fez inverter a tendência de declínio do número de famintos que se verificava por quase uma década. Essa tendência era sustentada pela adoção, por parte dos países e com o apoio da FAO, de um modelo de política de combate à fome atrelado a políticas de combate à pobreza. Tudo isso foi ainda agravado pela crise econômica mundial, que contribuiu para retrair a cooperação internacional dos países doadores tradicionais. Vivemos uma crise no multilateralismo.
A essa questão somou-se um problema ainda é mais grave: nossos últimos dados apontam que a obesidade passou a ser um problema ainda mais grave do que a fome. Diferentemente da fome, ela afeta a todos os países indistintamente; afeta ricos e pobres, e a todas as raças, gêneros e idades. É uma epidemia global. Quantitativamente, o número de pessoas com fome está se aproximando rapidamente do número de obesos.
Isso nos faz concluir que nós conseguimos, sim, nos preparar e achar uma fórmula para combater a fome, baseada em políticas públicas e regulamentações, mas não podemos dizer o mesmo quando falamos de obesidade e de outras formas de má nutrição, como determina o ODS 2.
As dietas saudáveis carecem de mecanismos legais de promoção, seja pela rotulagem e taxação de produtos ricos em açúcares, sal e óleos saturados, seja pela coibição de propagandas de alimentos não-saudáveis destinadas a crianças, entre outros.
A indústria alimentícia evoluiu, inovou-se no consumo alimentício, mas as regulações e leis nacionais e internacionais não têm acompanhado esse processo. Daí a falha nessa governança alimentar que não conseguimos atingir e que precisa ser urgentemente repensada.
Uma das questões em pauta em diversos organismos internacionais é o financiamento. Como a FAO tem feito para buscar novas fontes de financiamento?
Esse é um problema crônico em todo o sistema Nações Unidas. No começo desse mês, o Secretário-Geral Antonio Guterres informou aos países de que a ONU passa por problemas graves de liquidez, que afetam as atividades de campo da organização. Essa tendência, que aumenta desde 2010 em todo o sistema, deve-se “a atrasos nos pagamentos, com alguns Estados-Membros a não pagarem a tempo ou na totalidade”. No caso da FAO, desde que eu cheguei, há uma política de crescimento nominal zero de seu orçamento. Isso significa uma redução em termos reais de quase 20% nos últimos sete anos.
Ano após ano, apresentamos o mesmo teto orçamentário aos países membros. Há uma posição majoritária entre os países desenvolvidos, liderada pelos Estados Unidos, de que não se deve aumentar a contribuição obrigatória nem mesmo para cobrir as perdas inflacionárias. Essa contribuição funciona como a mensalidade de um clube: todos os países têm de fazê-la por serem membros da FAO. Além disso, eles podem fazer contribuições voluntárias, cujo aumento tem sido uma tendência não apenas na FAO, mas em todo o sistema ONU. Os Estados Unidos e outros países doadores têm mantido fixas as suas contribuições obrigatórias e se comprometido a aumentar a sua contribuição voluntária.
Quando assumi, em janeiro de 2012, a proporção era de um para um: para cada dólar que recebíamos da contribuição obrigatória, outro vinha de doação. Hoje isso dobrou: são 2 dólares de doação para cada dólar de contribuição obrigatória. O risco com o aumento dessa tendência é que o trabalho da organização passa a ficar cada vez mais à mercê das prioridades dos países doadores. Esse é o grande problema: quem dá o dinheiro é quem decide qual trabalho a organização faz.
Na FAO, e como em qualquer agência especializada da ONU com independência orçamentária, a contribuição obrigatória atende aos projetos de interesse coletivo. As contribuições voluntárias trazem o que costumamos chamar de “produtos carimbados”, ou seja, o recurso vem destinado para fazer esse ou aquele projeto.
Isso não é bom para uma organização internacional que se quer considerar independente. O que a FAO faz é diferente de um organismo financeiro. Somos uma organização de ajuda técnica. Aqui, em cada país tem um voto. Niue, que tem dois mil e quinhentos habitantes, é uma pequena ilha do pacífico, por ser um estado membro da FAO, tem o mesmo voto que tem a China, a Índia ou os Estados Unidos.